
Acerca de

A rapariga de olhos grandes e cabelo preto
Capítulo I
Acordou sobressaltado. Levantou-se e foi ao corredor. O Lorde estava encostado à porta da rua. Olhou para ele, o cão parecia sorrir. Abanava a cauda. Foi à cozinha, bebeu um copo de água, o micro-ondas marcava 9h10. Lavou os dentes, olhou-se ao espelho. Olheiras carregadas. Vestiu uma t-shirt, calçou uns ténis, abriu a porta e saiu. Com o Lorde atrás.
O ar estava fresco. Devia ter levado um casaco. As folhas das árvores caiam, formavam um tapete sob os seus pés. Cheirava a outono. Não havia muitas pessoas na rua. Era domingo.
Tinha-se deitado tarde. A escrever. Tentava há anos publicar um livro. Queria um livro em papel. Escusava-se ao digital. Tinha ouvido tantos nãos que já não os contava. Recompunha-se e todos os dias escrevia.
Caminhava sem destino na rotina diária de levar o cão à rua. Apeteceu-lhe passar na Bertrand. Lá foi. Garrett abaixo.
Entrou na livraria. O Lorde ficou à porta. Já estava habituado.
Folheou vários livros. Parava sempre nas autobiografias. Havia naquele espaço um odor inebriante que o fazia sonhar. Um dia talvez visse o seu livro também ali. Pronto a ser folheado.
Saiu. Não comprou nada. O dinheiro escasseava. Trabalhava no antiquário da tia. Não se vendia quase nada. Uma coisa ou outra de quando em vez. A tia continuava a pagar-lhe. Viúva de um general das forças armadas, não tinha filhos. O sobrinho era tudo para ela. Deu-lhe trabalho e a casa onde morava no Bairro Alto. Era-lhe tremendamente grato, fazia-lhe companhia e ajudava-a nas logísticas do dia a dia. Gostava muito dela.
Garrett acima. O sol espreitava. Havia agora mais pessoas na rua.
Olhou em frente. Ao subir a rua, ela descia, em passo ligeiro e saia airosa. O cabelo preto e os olhos grandes inundavam a rua. Inundaram-no a ele que se rendeu ali. Quis que ela olhasse. Cruzaram-se, ombros quase a tocarem. Ela passou. Ele girou a cabeça. Ela rodou nos calcanhares e fitou-o. De seguida abriu um sorriso, enorme, vermelho suave. A imagem perfeita, de um quadro de Monet a cores pastel. Continuou caminho e ele quis correr atrás, estancou, preso ao chão e viu-a desaparecer ao longe.